Yannick (2023)

Desde domingo que tenho andado a dormir com a extrema-direita debaixo da almofada. Este compasso de espera entre os resultados das eleições legislativas e a formação de governo é uma nuvem difusa de probabilidades, com muito espaço para uma reflexão ex post. Enquanto o futuro não se decide sobre que forma tomar, continuamos a viver o nosso dia-a-dia. Comemos, dormimos, vamos trabalhar, convivemos, e tentamos não sentir aquela ténue ansiedade que não nos larga. Aquele desejo de definição. A variável desconhecida baralha-nos o instinto e as contas. A terceira força política. Tento não pensar nisso, mas acabo por levá-la comigo para todo o lado. Aparece-me no meio das conversas com amigos. Está na música que ouço. Inevitavelmente, acompanhou-me à sala de cinema, para ver o Yannick (2023), de Quentin Dupieux. Se o que tiver a dizer sobre o filme parecer muito carregado de leituras políticas, já sabem porquê.

Dupieux pregou-nos uma partida. Ou fomos nós que nos deixamos enganar, mais uma vez. É um realizador cujos filmes vão contra as expectativas e os lugares-comuns. Rubber – Pneu (2010), pelo qual é mais conhecido, foi rapidamente catalogado como um filme “no gozo”, “tão-mau-que-é-bom”, “trash”, na onda de outros títulos como Serpentes a Bordo (2006), ou Piranha 3D (2010). Mas, quem viu para além do trailer, sabe que, apesar de narrar as aventuras de um pneu assassino com poderes telecinéticos (chamado Robert), Rubber é uma meta-comédia inteligente que parodia não só o género em que se insere, mas o cinema em si. E serve de manifesto para o nicho absurdista que Dupieux viria a cravar na paisagem cinematográfica. Filmes como 100% Camurça (2019), Mandíbulas (2021), ou Fumar Causa Tosse (2022), todos pegam numa premissa e nas expectativas que lhe estão associadas, para as deturpar, frustrar, ou esquecer completamente. O que é refrescante em ver um filme de Dupieux é precisamente o inesperado, o surreal, o absurdo. As suas narrativas dadaístas libertam-nos, espectadores, do peso da lógica, do racionalismo, da causa e efeito. 

Em teoria, portanto, ir ver um filme de Dupieux ao cinema seria bom remédio para interromper o ciclo de ansiedade e frustração em que a noite eleitoral me deixou. Mas o francês trocou-nos as voltas, novamente. Em Yannick, deixa de lado o surrealismo, o absurdismo, o dadaísmo, e entrega-nos o seu filme mais directo e focado. Ainda por cima, funciona lindamente como alegoria do momento em que vivemos: em Portugal, na Europa, no mundo. Para alguém que já ia hiperssensibilizado, como eu, bastou o genérico inicial para me pôr em guarda. Como uma ameaça que se aproxima, o título do filme surge primeiro tão pequeno que nem se distingue o que está escrito. Depois mais perto, um pouco maior. E mais. E mais. Até quase não caber no ecrã. E eu, sentado no escuro da sala, a ruminar: “1 deputado… 12 deputados…. 48 deputados…”.

Yannick é o filme de Dupieux mais fácil de resumir a um amigo ou familiar. Num pequeno teatro de Paris, três actores (Pio Marmaï, Blanche Gardin, Sébastien Chassagne) representam uma peça de comédia ligeira (“O Cornudo”) para uma plateia esparsa e passiva. Os actores entregam-se freneticamente a um texto pobre, e o público ri-se nos momentos certos, sem grande entusiasmo. Só um membro do público não se ri. E, num impulso, levanta-se e interrompe a peça para mostrar o seu desagrado. Este é o Yannick do título (interpretado por Raphaël Quenard), um guarda-noturno de Melun que tirou folga e fez uma longa viagem de comboio para poder ir ao teatro abstrair-se das suas tristezas. Está frustrado porque a peça é tão má que se sente roubado do seu tempo, e quer que as suas queixas sejam ouvidas e levadas a sério. E sim, é irónico que eu não me tenha conseguido abstrair das minhas aflições indo ver um filme sobre alguém que não se consegue abstrair das suas enquanto vê uma peça de teatro. 

Inicialmente, Yannick é admoestado, expulso da sala, e ridicularizado. Para ter a atenção e respeito que deseja terá de voltar a invadir a sala, com uma arma. Segue-se uma situação de reféns durante a qual Yannick irá obrigar os artistas a interpretar uma nova peça, que ele próprio se propõe a escrever. 

Sem subtilezas, e sem rodeios, Dupieux fez um filme sobre um representante de um segmento da sociedade que – cansado de ver encenada uma narrativa que não o considera e com a qual não se identifica – procura apontar os seus defeitos e limitações aos responsáveis. Condicionado pela sua situação laboral e económica, a única forma que encontra de o fazer é o protesto, directo e invasivo. Ao ver-se menosprezado e “colocado no seu lugar”, resta-lhe usar métodos mais drásticos e violentos. E aí sim, consegue fazer-se ouvir. Sei que não me conseguem ver, mas imaginem que vos pisco o olho repetidamente e dou cotoveladas nas costelas enquanto leem isto. Estão a topar?

A simplicidade da premissa de Yannick é uma vantagem e uma desvantagem. Uma vantagem, porque é eficaz, e a execução atipicamente sóbria de Dupieux ajuda, não a esticando muito além de uma hora de filme. Uma desvantagem, porque o filme esgota-se nessa premissa, e muitos espectadores certamente sairão desapontados entre o que imaginaram que poderia ser, e o que o filme realmente é. Isto tudo para dizer que a ideia inicial é, neste caso, melhor do que o filme em si. 

O que não quer dizer que Yannick não acabe por explorar vários ângulos da sua linha temática, ainda que de forma ténue. Esse cuidado, no entanto, acaba por contribuir para a discussão pós-filme. O retrato que faz da personagem principal parece o retrato que todos os analistas têm tentado fazer, na última semana, do eleitor-modelo da extrema-direita. Yannick está tomado pela revolta, mas não por um ódio irracional. Tem uma educação abaixo da média, mas não é burro nenhum. Demonstra preconceitos adquiridos face a certos grupos sociais (por exemplo, quando pergunta a um dos espectadores, de tez escura, se quer ir comer alguma coisa depois do espectáculo: “pode ser um sítio árabe, não me importo”) mas não é fóbico. E existe algo mais, qualquer coisa profunda, que não conseguimos tocar, mas que é aludida em alguns momentos. Podemos tentar pintá-lo de muitas maneiras (como no poster para o filme), mas Yannick é tão complexo e difícil de categorizar como qualquer um de nós. 

Porque ele é um de nós. Teve uma vivência diferente, e por isso vê as coisas de forma diferente. É fácil, do lado de cá, dizer-lhe que está errado, ou que devia seguir um outro caminho. Às vezes sentimos um orgulho tão grande nos nossos princípios que esquecemos o quanto foram moldados pelo nosso privilégio. Até a pistola chegar às nossas mãos, desconhece-se aquilo em que somos capazes de nos tornar. 

Um reparo que costumam fazer aos filmes de Dupieux (este incluído) é faltar-lhes uma punchline. No caso de Yannick, tenho de discordar. É que, enquanto dentro do teatro gritamos e discutimos uns com os outros, tentando impor narrativas uns aos outros, cá fora, prestes a invadir a sala com muito mais do que uma pistola, está o verdadeiro opressor. A extrema-direita não é a doença, é um sintoma. Combatê-la é como combater uma febre, ganhando tempo, mas atrasando a cura. A doença, essa, talvez seja aquela coisa inominável com que nos deitamos todas as noites, e nos levantamos todas as manhãs. Que nos rege os dias e aponta as ambições. Por outro lado, talvez tenha um nome tão óbvio que foi a primeira palavra que vos veio à cabeça. Essa mesma*. 











* Parafraseando Quim Barreiros quando numa entrevista lhe perguntaram se, disponibilizando-se para actuar numa arruada do Chega, se identificava com as suas propostas: “Estou aqui no Chega como amanhã posso estar no Bloco. Eu preciso é que me paguem”.

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