O Rapaz e a Garça (2023)
Hayao Miyazaki nasceu e passou os primeiros anos da sua infância durante a Segunda Guerra Mundial. Algumas das suas memórias mais antigas são de cidades a serem bombardeadas. A sua família foi evacuada por duas vezes, primeiro de Tóquio para Utsunomiya, e depois para Kanuma. O pai de Hayao era o director de uma fábrica de peças para aviões militares, o que permitia à família viver desafogadamente, mas era também motivo de embaraço para o jovem Miyazaki. Yoshiko, a sua mãe, sofria de tuberculose e era cuidada em casa. Viria a falecer em 1983, tinha Hayao 20 e poucos anos.
Os filmes de Miyazaki sempre incluíram vários destes elementos da sua biografia. A guerra está quase sempre presente e, ainda que se lhe oponham, várias das suas personagens vêem-se envolvidas no conflito – Porco Rosso (1992), As Asas do Vento (2013), O Castelo Andante (2004). São também várias as personagens de Miyazaki baseadas na sua própria mãe: a autoritária Capitã Dola, em O Castelo no Céu (1986); a mãe tuberculosa Yasuko, em O Meu Vizinho Totoro (1988); a decidida e bondosa Sophie, em O Castelo Andante (2004). Ainda assim, o recente O Rapaz e a Garça (2023) é capaz de ser o seu filme mais pessoal, em vários níveis.
Em 2016, passados 3 anos de ter anunciado (não pela primeira vez) a sua reforma, Miyazaki estava de volta aos storyboards, projectando um filme cuja história iria beber às suas memórias e experiências pessoais. Ao mesmo tempo, O Rapaz e a Garça é um poema sobre os relacionamentos profissionais de Miyazaki com o seu produtor de longa data, Toshio Suzuki, e o seu colega e amigo Isao Takahata. E é também um testamento à sua obra, e uma passagem de testemunho comovente.
Durante a Guerra do Pacífico, o rapaz do título – Mahito Maki – perde a mãe num incêndio, e muda-se com o pai para o campo, perto da fábrica de peças de aviões onde este trabalha. O pai casa-se com a irmã da mãe de Mahito, Natsuko, que está grávida. Mahito é bem recebido na nova casa, quer por Natsuko quer pela trupe de velhinhas que lá habitam, mas permanece distante e calado. Os esforços do pai – bem-intencionado, mas desatento – para que Mahito se integre na escola saem furados quando os outros miúdos lhe dão uma tareia. Recuperando, em casa, Mahito é visitado por uma garça que fala, e que o conduz a uma torre erguida na propriedade pelo seu tio-avô, um homem que “leu demasiados livros e ficou louco”. A torre levá-lo-á a um mundo debaixo do nosso, coberto por oceanos, onde Mahito conhecerá várias personagens coloridas, outros tantos perigos, e se confrontará com o seu tio-avô, o feiticeiro que criou e rege este mundo.
Mahito é o próprio Miyazaki e, em versões prévias do guião, a garça seria Suzuki, e o feiticeiro seria Takahata. Como Miyazaki trabalha nos seus filmes com um guião aberto, que vai sendo alterado ao longo da produção, a morte de Takahata em 2018 influenciou O Rapaz e a Garça. O que inicialmente poderia ser um diálogo a três vozes foi-se transformando num diálogo entre Miyazaki… e si mesmo. Miyazaki é tanto o rapaz que escapa do seu trauma para um mundo de fantasia e imaginação, como é o feiticeiro responsável por criar esse mesmo mundo, através do desenho e da animação.
Dentro do mundo criado pela imaginação cabem toda a espécie de criaturas e maravilhas. Cabem também aqueles que amamos na vida real e que trazemos connosco para este mundo interior, dando-lhes novas roupas, novas vidas, novos poderes. Neste mundo existem navios que nos permitem navegar para qualquer continente, e portas que nos levam a qualquer ponto no tempo, a qualquer memória. Os animais falam, e as almas (ou Warawara), fruto da imaginação de alguém, ascendem ao mundo real para nascer. Tudo é material para moldar, para criar histórias. Pequenos blocos de construção que o feiticeiro vai empilhando, da melhor forma que sabe, mas que ameaçam cair a qualquer momento.
Suzuki disse numa entrevista que Miyazaki desistiu da reforma e trabalhou n’O Rapaz e a Garça como forma de dizer ao seu neto que iria um dia abandonar este mundo, mas deixar-lhe-ia este filme. No filme, o feiticeiro estende a mão a Mahito, seu descendente, na esperança de que o rapaz possa tomar o seu lugar e cuidar do mundo que construiu. Cada coisa tem o seu tempo, cada homem tem a sua estação, e no final todos devem regressar pela porta da memória de onde vieram.
Os blocos que o feiticeiro usa estão poluídos com malícia, mas Mahito pode usar novos blocos, para criar um mundo melhor. O rapaz recusa, afirmando que a malícia está dentro dele também, e que acabaria por ser transferida para os blocos. Talvez ninguém seja realmente merecedor do mundo que Miyazaki criou ao longo dos anos, com as suas histórias. Nem mesmo o próprio Miyazaki. Mas, com este filme, ele deixa-nos a nós, seus netos, as chaves do reino.