Baan (2023)

Podemos cruzar-nos na rua com centenas de pessoas, as multidões que povoam as cidades onde vivemos e que visitamos. Mas cada um de nós habita uma cidade que é só sua ou, melhor dizendo, há uma cidade individual que nos habita. Essa cidade é feita de ruas, avenidas, becos, escadinhas, restaurantes, cafés, bares, cinemas, parques, salas de concerto, bibliotecas, que estão ligados por um mapa que fomos desenhando dentro de nós, ao longo dos anos. O mapa desenha-se quando saímos para o trabalho de manhã, nos transportes públicos, e também quando regressamos para casa a pé, de madrugada, pelas ruas vazias. É feito de memórias, de pessoas, de momentos, de sensações. Uma arquitetura emocional ligada ao espaço que ocupamos. 

No centro desse mapa, está aquilo a que chamamos casa. Lar. Pode ser o espaço que ocupamos entre quatro paredes e um tecto, onde temos as nossas coisas, onde deixamos o mundo lá fora. Pode ou não ser partilhado com um outro, alguém que para nós é indissociável da ideia de lar. Um animal de estimação, um companheiro, uma família. Seja como for, lar é onde baixamos as defesas, onde podemos estar à vontade. Onde a tensão que nos mantém os ombros rígidos e os punhos cerrados se desvanece, como o mar que recua. Onde podemos ser como somos, sem máscaras. 

Perder o outro pode ser como perder o lar. Para L. (Carolina Miragaia), a protagonista de Baan (2023), o filme de Leonor Teles, o lar deixou de o ser antes sequer de a relação terminar. Desalojada, L. percorre as ruas de Lisboa, difusas e irreconhecíveis, confundindo-se com o circo luminoso de Banguecoque. A sua cidade ficou sem o centro emocional, e assemelha-se, agora, a outra coisa qualquer. Algo exótico, assustador, anónimo. Neste labirinto, L. irá encontrar, perder, e reencontrar outra alma que não sente Lisboa como a sua casa. K. (Meghna Lall), foi adoptada na Tailândia por canadianos, viveu em Londres, e agora está em Lisboa. Não consegue chamar lar a nenhum destes sítios, por isso continua a fugir para a frente. Estas duas personagens dão corpo às cidades gémeas siamesas que se fundem ao longo do filme. 

Das entrevistas que li a Leonor Teles, pouca ou nenhuma abdica de fazer a ligação da casa de Baan com a crise da habitação, a gentrificação, a imigração. Não é injusto fazê-lo, até porque o filme tem esses temas como pano de fundo, arriscando-se a tocar-lhes de forma mais directa em alguns momentos. L. é uma arquitecta que estagia num estúdio no qual os projectos para as pessoas (uma biblioteca) se pagam com projectos para estrangeiros. Os seus patrões, que têm meios para viver em Lisboa, pensam abandoná-la pela vida no campo. Quem ainda ocupa a cidade, e lhe traz vida, são os imigrantes, como o funcionário da loja de conveniência onde L. vai muitas vezes. Estes novos lisboetas têm de lidar com o preconceito, os comentários xenófobos. É algo com que K. também se preocupa, em relação à população asiática. 

No entanto, nas respostas que vi Leonor Teles dar a esse tipo de comparação, senti a sua vontade em direcionar a atenção para o conceito de casa como lugar emocional. Acho que faz bem. Não só porque encostar o filme demasiado aos (importantes) temas da habitação em Portugal pode limita-lo a um ponto no tempo e no espaço, mas também porque é na expressão visual das emoções das protagonistas que Baan nos conquista. Isso torna-o intemporal. 

Apesar de não deixar de conter elementos autobiográficos da sua realizadora*, Baan é oficialmente a sua primeira longa-metragem de ficção. A isso se podem atribuir alguns tropeções, especialmente ao nível da qualidade dos diálogos. Mas a cor e o som com que Leonor Teles vitaliza o seu filme confere-lhe uma tal energia que facilmente esquecemos esses pormenores e nos perdemos nesta metrópole. 






* Na verdade, a realizadora viu-se ela própria ficar sem sítio para morar durante a rodagem do filme.

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