O Mal Não Está Aqui (2023)
Para falar sobre O Mal Não Está Aqui (2023), de Ryusuke Hamaguchi, vou ter de recuar um pouco atrás.
Quando Deus expulsou Adão e Eva do Jardim do Éden, duas coisas aconteceram. Um, a humanidade foi corrompida pelo pecado original, os seus efeitos passados de geração em geração. Dois, a própria Natureza foi também corrompida. O pecado entranhou-se não só nos homens, mas em todo o mundo natural. Onde antes havia coexistência em harmonia entre os animais existe agora violência, predação e seleção natural. Embora diferente do “mal moral” resultante da actividade dos homens, o “mal natural” é uma consequência indirecta daquele primeiro acto de desobediência no Jardim do Éden*.
Existem autores, como Isaac Asimov ou Daniel Hillel, que sugerem que o simbolismo por detrás da “Queda do Homem” em Génesis é o do abandonar das práticas nómadas dos nossos antepassados, transitando para uma sociedade sedentária e agrícola. Tem a ver com uma reordenação de valores da humanidade, substituindo um teocentrismo por antropocentrismo. Não é só o facto de Adão ter desobedecido a uma ordem direta de Deus ao comer o fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, mas a soberba de ter pensado para si mesmo que tudo na Natureza está ao seu dispor, para se alimentar, e aquele fruto não devia ser exceção. Nesse instante, o cosmos deixou de girar à volta do Criador para passar a ter o Homem como o seu eixo. O ego entrou no chatroom.
Antropomorfizar tem a ver com conferir características (ou mesmo forma) humanas a algo que, à partida, não as teria. E nós, humanos, que conferimos estas características, fazemo-lo para alimentar o nosso ego – tem sempre a ver connosco. O cinema está cheio de exemplos de antropomorfização da Natureza na sua relação com o Homem. Esta relação pode ser positiva, como nos filmes de animação da Disney: os ratinhos e passarinhos que ajudam a pobre Gata Borralheira (1950) a preparar-se para o baile; a pantera Bagheera e o urso Baloo que são os companheiros de Mowgli n’O Livro da Selva (1967). Ou… pode estar no extremo oposto: o niilismo absoluto da Natureza como “igreja de Satanás” em Anticristo (2009) de Lars Von Trier onde, tal como na Disney, os animais também falam, mas apenas para garantir que nós humanos sabemos que “o caos reina”. Em outros filmes ainda, a relação é propositadamente ambígua, e não cai facilmente numa categorização entre bem e mal. É o caso d’A Princesa Mononoke (1997), de Hayao Miyazaki, onde o um desequilíbrio na relação entre humanos e o mundo natural os leva ao conflito com os espíritos da floresta.
À primeira vista podemos confiar na palavra de Hamaguchi e acreditar que O Mal Não Está Aqui quando nos vemos na pequena comunidade rural de Harasawa. A serenidade da montanha, e do rio e lagos que descongelam no final do Inverno, parece não permitir qualquer pensamento de medo ou sobressalto. Os habitantes da pequena vila vivem em equilíbrio com a Natureza. Takumi (interpretado por Hitoshi Omika), o biscateiro de serviço, passa os seus dias em incursões pela floresta, colectando água da nascente para um restaurante local. Ninguém conhece a floresta como ele, que sabe identificar as plantas comestíveis silvestres, e os hábitos dos veados que ali habitam. Por vezes, Takumi está tão embrenhado nas suas tarefas que se esquece de ir buscar Hana (Ryo Nishikawa), a sua filha, à escola. Mas, na paz em que vivem, nem professores nem Takumi, e nem a própria Hana dão muita importância a que ela faça sozinha o caminho para casa, pela floresta.
O equilíbrio em que vivem os habitantes de Harasawa está prestes a ser perturbado. Uma empresa de Tóquio, Playmode, está a planear construir um parque de glamping na floresta. Dois representantes da empresa (interpretados por Ryuji Kosaka e Ayaka Shibutani) são enviados à vila para apresentar o projecto e discuti-lo com a comunidade. A sua falta de preparação diz tudo sobre a atitude da empresa. A apresentação não pretende ser mais do que uma encenação de preocupação e diálogo para com os habitantes. Os enviados da empresa são meros atores sem qualquer preparação para discutir aspetos técnicos e logísticos com a população. Todo o projeto, na verdade, é pensado para ser executado à pressa, com mínima consideração, de modo a poder ser subsidiado pelo Estado. Naquela que é a melhor sequência do filme – e que faz lembrar os documentários institucionais de Frederick Wiseman – a proposta é atacada, desmascarada e criticada pela comunidade unida e organizada. O principal ponto de discórdia é a construção de uma fossa séptica para o parque de campismo, que irá poluir os cursos de água para a vila, e para todas as outras comunidades a jusante.
Temos, portanto, um clássico capitalismo versus Natureza mas Hamaguchi, fazendo jus ao título que escolheu para o seu filme, introduz algumas nuances na forma como retrata os representantes da Playmode que, sabendo que as intenções dos seus patrões não são as melhores, se veem obrigados a cumprir papéis com os quais não se sentem confortáveis, e que nem sequer fazem parte das suas funções. Não admira, pois, que troquem de lado a partir do momento em que Takumi os “recruta” para o ajudarem no seu trabalho em contacto com a Natureza e a comunidade.
Mas, tal como o final do filme parece dar a entender, mesmo a redenção individual pode não chegar para impedir o desequilíbrio que foi introduzido no delicado ecossistema de Harasawa. O mal passa a existir quando há vítimas. Se esse mal tem origem num agente que pode ser responsabilizado pelas suas ações, como é o caso dos patrões da Playmode, perfeitamente cientes dos estragos que irão causar, então é moral. No caso do mal natural, não existem agentes morais que se possam culpar, apenas vítimas. A nossa tentação de antropomorfizar poderia sugerir que a Natureza é vingativa, por a termos arrastado no nosso pecado original. Mas é apenas indiferente.
É curioso pensar em como os dois extremos que o filme propõe – a Natureza de um lado e o capitalismo do outro – acabam por ter um efeito desumanizador. No caso de Takumi, o seu contacto permanente com a Natureza tornou-o mais animal. É observar o seu rosto inexpressivo, as poucas palavras que emprega. E particularmente a forma como esquece as suas responsabilidades de homem pai. Do outro lado, subindo a escadaria capitalista, temos indivíduos cada vez mais desligados dos seus pares, ao ponto de o chefe de topo da Playmode nem sequer ter uma existência corpórea no filme. Vemo-lo unicamente como uma transmissão por Zoom.
Em última análise, o filme de Hamaguchi propõe uma eco-parábola interessante, mas transmite-a de forma pouco eficaz. Nada tenho contra slow cinema, mas o ritmo exasperante de O Mal Não Está Aqui, especialmente na primeira parte, não é mais tarde redimido pelo seu desenvolvimento e conclusão. Tudo fez mais sentido para mim quando li que, inicialmente, estava pensado como uma curta-metragem sem diálogo, apenas acompanhada pela (belíssima) banda sonora de Eiko Ishibashi. Não vi nenhum outro filme de Hamaguchi – nem sequer o premiado Drive My Car (2021) – mas acredito que sabe filmar. Só que, para cada cuidada cena filmada na floresta, existe uma cena com a câmara metida dentro de um carro em movimento que me tirava completamente do filme. Talvez tivesse preferido a versão de 30 minutos.
* Quando comecei a escrever sobre filmes não esperava dar comigo a falar tanto sobre questões bíblicas, mas acabo por ir lá parar. Aconteceu primeiro com o Pobres Criaturas (2023) do Yorgos Lanthimos, e agora com este.