Máquina Fantástica (2023)

Dois indivíduos conversam sobre a possibilidade de vida alienígena, e sobre os múltiplos relatos de visitas – encontros imediatos de terceiro grau – que outros habitantes do Universo poderão ter feito ao nosso planeta. O primeiro não está convencido. Não consegue compreender com que lógica uma raça que desenvolveu viagens interplanetárias as utilize para vir a um planeta menos desenvolvido desenhar círculos nas searas, abduzir gado, ou colocar sondas tipo supositórios dentro de seres humanos. O segundo contrapõe com o seguinte: todos os dias, na autoestrada, cruzamo-nos com dezenas de condutores; quais as probabilidades de algum deles ter estado envolvido na invenção do automóvel, ou mesmo compreenda o seu funcionamento? Se os extraterrestres são mesmo tão avançados, as viagens pelo espaço podem ser tão comuns que quem cá chega não são as mentes mais brilhantes, mas sim aquela malta que faz piões com o carro nos campos, ou pinta as placas com o nome das terrinhas. 

Lembrei-me desta história – que não me recordo onde li* – enquanto via Máquina Fantástica (2023), o documentário dos realizadores Axel Danielson e Maximilien Van Aertryck. Ao longo de menos de uma hora e meia, o filme faz uma revisão histórica e sociológica sobre a imagem gravada e o seu impacto no mundo.

Para isso, têm primeiro que voltar ao início de tudo. À camera obscura e à origem da palavra fotografia (desenhar com luz), e os primeiros registos fotográficos de paisagens e pessoas. Pouco depois, as primeiras imagens em sucessão – o movimento. Por esta altura, a fotografia era associada ainda com a verdade, com um registo factual do mundo. Mas depressa se torna claro que não é bem assim. Mesmo que a edição ou efeitos especiais tenham sido desenvolvidos mais tarde (sobretudo por Georges Méliès), a encenação é tão antiga como a própria arte fotográfica. Uma fotografia pode mentir enquanto diz a verdade. Mesmo que o que está à frente da objectiva não seja adulterado de forma alguma, a câmara esconde tudo o que o seu campo de visão não apanha. E assim molda uma imagem do mundo. O filme não chega a citar Jean-Luc Godard, mas podia. Em toda as suas contradições. Falando através da personagem interpretada por Michel Subor, em O Soldado das Sombras (1963), Godard afirma: “A fotografia é a verdade. E o cinema é a verdade 24 vezes por segundo”. Porém, numa entrevista algures em 1967, Godard dá a entender que a fotografia, o cinema “Não é uma imagem justa. É justamente uma imagem”. A fotografia não é um reflexo da realidade. É a realidade de um reflexo. 

Estes tipos de considerações filosóficas são particularmente interessantes nos dias de hoje. Li um artigo há pouco tempo sobre o pânico que se gerou por causa do aparecimento dos “deepfakes” – vídeos alterados recorrendo a inteligência artificial. A hipérbole predominava: “avizinha-se um infocalipse”; “colapso da realidade”. Esperava-se que esta tecnologia viesse a afetar futuras eleições, especialmente porque o conteúdo noticioso se baseia cada vez mais em formatos vídeo, e é mais fácil para qualquer pessoa hoje em dia adulterá-los. 

No entanto, não existem provas de que os “deepfakes” tenham tido qualquer impacto tangível nas eleições americanas de 2020, por exemplo. Na verdade, é mais fácil encontrar vídeos que pretendem demonstrar as possibilidades aterradoras da IA do que um “deepfake” que tenha realmente enganado o público de forma consequente. 

Como o documentário de Danielson e Aertryck ilustra, nós convivemos com a manipulação de registos – seja a escrita, desenho, fotografia, ou filmagens – desde que estes existem. E temos conseguido ter sempre o discernimento suficiente para saber em quais confiar, sem que a sociedade tenha colapsado. Os primeiros aparelhos fotográficos tinham dificuldade em capturar paisagens, então os fotógrafos acrescentavam-nas, posteriormente, à mão (ou coladas de outras fotografias). O título do filme de Danielson e Aertryck refere-se a um comentário feito pelo rei inglês Eduardo VII quando lhe foi mostrado um filme da sua coroação. O filme era completamente encenado, dirigido por Méliès no seu estúdio em Montreuil e divulgado no próprio dia da coroação para parecer uma filmagem do acontecimento real. Isso não impediu o rei de exclamar: “Isto é esplêndido! Que aparelho maravilhoso é o cinema. Conseguiu registar até as partes da cerimónia que não aconteceram”. 

É mais fácil enganar o rei de Inglaterra do que o público em geral. Coletivamente, temos anticorpos contra este tipo de manipulação: ceticismo, senso-comum, confirmação social. Na verdade, só é mesmo enganado quem quer. Se uma fotografia ou vídeo manipulado confirmar crenças ou enviesamentos que já possuímos, então aceitamo-lo mais facilmente. Foi o que aconteceu com Arthur Conan Doyle. O criador do detective mais famoso do mundo, que resolvia os mistérios através da lógica, acreditava em fadas porque lhe mostraram uma foto (adulterada, claro), onde estas apareciam a dançar com uma menina. Doyle, que perdeu o filho na 1ª Guerra Mundial, precisava de acreditar num outro mundo além do nosso, e nenhuma prova o podia convencer de que se tratava de uma fotografia encenada. Por outro lado, podemos ser bombardeados com centenas de provas factuais sobre algum assunto, e ainda assim não mudar de opinião sobre ele. 

Mas voltemos um pouco atrás. Após o aparecimento e desenvolvimento da câmara de fotografar e filmar, esta descentralizou-se das mãos dos artistas e jornalistas para as mãos de qualquer pessoa. E esse processo só tem vindo a intensificar-se com a difusão dos telemóveis com (várias) câmaras, e a Internet e redes sociais. Houve quem profetizasse um mundo onde qualquer um pudesse criar e divulgar as suas ideias facilmente. Uma era dourada de expressão livre. Na maior parte, o que obtivemos foram memes. E pornografia. Muita pornografia. O YouTube foi criado por ex-empregados da PayPal, em parte porque estes não conseguiam encontrar vídeos online do famoso acidente de guarda-roupa de Janet Jackson na SuperBowl 2004. E o primeiro vídeo nesta plataforma foi uma “dick joke”. 

A massificação das tecnologias de imagem e sua divulgação mudou a nossa relação com a imagem – especificamente com a nossa própria imagem. A Máquina Fantástica inclui filmagens de um contacto com uma tribo isolada, onde estes veem – pela primeira vez – uma fotografia sua. A mudança é profunda. Cria-se, quase automaticamente, uma consciência de si próprios que os levam a mudar aspetos do seu visual (um dos indígenas põe logo de parte o chapéu que usava). A partir do momento em que podemos escolher que imagem queremos passar da nossa vida, dos nossos gostos, etc., ficamos presos a essa imagem. A câmara tem tanto poder sobre nós que alteramos o nosso comportamento quando nos vemos à frente da sua objetiva. Como o famoso vídeo da entrevista a Guy Goma na BBC (também incluído em Máquina Fantástica), no qual este foi confundido com um especialista na Internet e, em vez de corrigir o erro imediatamente, surfou a onda e assumiu o papel que a câmara lhe conferiu. 

Nos melhores momentos, Máquina Fantástica consegue transmitir algum do assombro e maravilhamento advindos do surgimento da imagem gravada. Dá vontade de conseguir voltar a esse fascínio quase infantil, de vermos imagens em movimento projectadas num ecrã pela primeira vez. Mas, nos piores momentos, o filme parece reduzir-se a uma coleção de vídeos virais que não acrescenta muito ao discurso. O resultado final é um mosaico desigual, mas que acaba por encarnar as várias vertentes do nosso diálogo com as imagens que também documenta. É uma meta-selfie














* Desconfio que foi num dos livros do Scott Adams (provavelmente O Futuro Segundo Dilbert). Isto foi antes dele se tornar uma personalidade, digamos… complicada. 

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