A Zona de Interesse (2023)

Jonathan Glazer gosta de nos tirar da nossa zona de conforto. De nos desorientar. Em Birth – O Mistério (2004), colocou Nicole Kidman na banheira com um rapazinho de 10 anos, propondo-nos que este poderia ser o seu marido ressuscitado. Em Debaixo da Pele (2013), desafiou-nos a decifrar uma visão alienígena do nosso mundo, sem grandes pontos de apoio. 

Na cena inicial de A Zona de Interesse (2023), o seu novo filme, deixa-nos, literalmente, no escuro. Após surgir o título, seguem-se longos minutos de escuridão total, acompanhados apenas pela banda sonora de Mica Levi. Glazer sustém esta cortina até o mais paciente dos espectadores começar a remexer-se no seu assento. É desconcertante ficar a olhar um grande ecrã totalmente apagado. Os olhos varrem, aflitos, a tela, mas não encontram nenhum ponto de referência. Nada a que se agarrar. 

Quando finalmente recuperamos a visão, vemos uma família descontraída num picnic à beira-rio. Estes são os Höss: o casal Rudolph (Christian Friedel) e Hedwig (Sandra Hüller), e os seus cinco filhos. Ao longo das próximas duas horas vamos acompanhar esta que poderia ser uma família alemã normal. Mas quando Rudolph se despede dos filhos e sai para o trabalho, de manhã, atravessa o pequeno portão do jardim da sua casa, e entra no campo de concentração de Auschwitz, do qual é o comandante. Este é o filme que Glazer quis fazer sobre a banalidade do mal, adaptando livremente o romance do mesmo nome, de Martin Amis

Os Höss são filmados com um distanciamento e uma ausência de sentimentalismo que confere ao espectador a liberdade de decidir como quer encarar, emocionalmente, estas personagens. Podemos odiá-los pela indiferença com que vivem o seu dia-a-dia a paredes-meias com um inferno na Terra que ajudaram a criar e a manter. Mas podemos, ocasionalmente, empatizar com os seus pequenos dramas familiares, tão universalmente mundanos*. A provocação de Glazer está em retratar os Höss como seres humanos, nos quais nos conseguimos reconhecer, de uma maneira ou de outra. Não são codificados como “boas” ou “más” pessoas. São só pessoas. Como nós. Querem viver as suas melhores vidas, e proporcionar o mesmo à sua família. Na sua visão do mundo, não é sequer possível que tenham dúvidas acerca do seu posicionamento. Uma hesitação, e todo o castelo de cartas viria abaixo. No seu pequeno jardim, os Höss representam também a cumplicidade de todo um país que só queria continuar a viver as suas vidas, sem ter de saber nada sobre o que se passava atrás dos muros. 

Por mais altos que sejam os muros, por mais que tentem esconder, não têm como estancar a terrível realidade. Nisso, o trabalho do designer de som Johnnie Burn é impressionante. Em quase todas as cenas escutamos, mais ou menos longínquos, os gritos de dor e desespero, os tiros, a tortura, e outros sons que só podemos adivinhar o seu significado. Estes são os sons que, misturados com o canto dos pássaros, a família ouve ao pequeno-almoço, ou deitados na cama à noite. São os sons que chegam aos ouvidos das crianças, nos seus quartos, e que elas incorporam nas suas brincadeiras. As cinzas com que Hedwig aduba o seu idílico jardim (cujas trepadeiras cobrirão, um dia, o muro desagradável à vista) também poluem o rio onde se banham, enchem o ar que respiram e mancham a roupa estendida. É impossível escapar àquilo a que o próprio Glazer chamou, em entrevistas, o “outro filme” que existe em simultâneo com o que vemos no ecrã, e que o realizador recusa mostrar explicitamente. 

Não existe música a acompanhar a paisagem sonora de A Zona de Interesse, nada que nos possa distrair. Da banda sonora composta originalmente por Mica Levi, maior parte foi deitada ao lixo na pós-produção, sobrando apenas apontamentos que vão sublinhado algumas cenas do filme. 

Além do som, Glazer usa a luz, e a própria geometria do espaço para manter a sensação de desconforto com que começou o filme. Optando por usar luz natural nas filmagens, as cores e os brancos são demasiado fortes, demasiado reais. Para filmar a casa dos Höss, Glazer montou câmaras em cada divisão, em funcionamento contínuo, numa espécie de Big Brother. Quando um dos actores passa de uma divisão para a outra, o seu movimento segue uma lógica precisa e vertiginosa. A saída de um plano implica a entrada em outro, em tempo real. Isto permitiu também uma maior liberdade para os actores improvisarem. 

Voltando aos muros, a cena final de A Zona de Interesse tenta desenhar uma última divisão entre “nós” e “eles”: uma separação através do tempo. Quando Rudolph Höss desce a escadaria do seu escritório em Berlim, parece vislumbrar, através do corredor escuro, um futuro que é o nosso presente: a crueldade do regime nazi, e o sofrimento das suas vítimas, ambos como meras peças de museu, cuidadosamente mantidas pelas atuais funcionárias do campo de Auschwitz, convertido em memorial. Poderia servir de consolo, mas tal como os outros muros com que o filme procura conter o horror, também este não é estanque. A História é um edifício como aquele que Höss percorre, uma escadaria infinda com vários pisos que se repetem, e outras tantas passagens escuras que não sabemos onde vão dar. 

Será apenas Höss quem vagueia perdido, à noite, pelos corredores labirínticos da memória? Ou seremos também nós? 









* Podemos ainda lembrar-nos, enquanto vemos o filme, que também os Höss, e o seu estilo de vida, têm os dias contados. A 8 de Maio de 1945, exactamente um ano após o regresso de Rudolph ao comando de Auschwitz, a Alemanha nazi rendia-se aos Aliados. Passados outros dois anos, Rudolph seria executado. A pedido dos prisioneiros sobreviventes, a sentença foi levada a cabo no próprio campo de Auschwitz.

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